Madeleine Alves
Viver é perder cascas
continuamente
Era uma noite fria e estrelada lá fora enquanto Vera se
olhava no espelho cá dentro.
Nos últimos dois meses, já perdera as contas de quantas vezes
já o tinha feito. Mas a cada vez, era sempre como a primeira. Difícil. Começava
assim, com uma frase-clichê:
- Paul, preciso conversar uma coisa com você...
Frases-clichê são muletas muito úteis quando o discurso
precisa andar. O peito arfava, as olheiras fundas, os ombros arqueados... tudo
pesava. Mas não mais do que ter que tomar aquela atitude.
Fazia um ano, sete meses e quatro dias que dissera “Sim” ao
pedido “Dessa vez, vamos namorar?”
Tanto pouco para tantos outros – tão muito
para Vera. Comparando-se aos anteriores, parecia uma vida. E a vida antes
disso, parecia uma outra vida. Lembrava daquela noite dentro do Gol à
beira-mar. Ao redor, todas as luzes de Natal. Daqui a uma hora, descobririam
que a bateria arreou e Jacques, irmão de Paul viria ajudar naquela situação
hilária.
Aquele não era exatamente um começo: anos antes, o começo do
começo havia sido nos bancos escolares de um amor de verão. Leve, porém
constante – um quase-namoro não assumido. Uma viagem no fim do verão e seu
retorno fizeram acabar aquela experiência-cápsula que havia sido boa.
Mas...
vida que segue.
E a vida seguiu. Um ano, dois anos, três anos. Quatro anos.
Turbilhões atrás de turbilhões, às vezes um recorrente “Oi” via internet
intrigava Vera. “O que ele quer?”, ela pensava. Mas seguia: as várias dores e
delícias da descoberta da vida lá fora
não deixavam Vera intrigar-se por longo tempo. E no entanto... às vezes,
emergia a questão: “E se tivesse dado certo, como seria?” Numa noite, Paul
escreveu que estava com depressão. Vera não sabia dizer não a um apelo
desesperado.
- Nossa, você quer conversar? Não fica assim, vem pra cá e a
gente conversa.
Nunca soube exatamente se era um pretexto ou um fato. Mas
duas semanas depois, quando ainda se viam e se falavam quase todos os dias como
naquele verão, quando veio o “Dessa vez...”, a recorrente pergunta teve uma
resposta.
Então, Vera soube como poderia ter sido porque efetivamente
entregou-se de corpo e alma a viver esta experiência e a obter esta resposta.
No fundo, sempre soube qual seria o fim – ou seja, que teria fim. Mas não foi
sem uma grande dose de coragem que escreveu linha por linha o enunciado que
respondia àquela pergunta-ideia-fixa.
No início, tudo são flores, todas as diferenças parecem
pequenas e viver a energia de um novo relacionamento permeia os dias. Permeiam
as horas. Permeiam as, em média, 6 ligações/dia. Permeiam os fins de semana que
Vera deixou de passar com sua família não-convencional para passar com a
tradicional família de Paul.
Quando Vera deu por si, estava impermeável a tudo que não
fosse aquela relação. E como era difícil desimpermeabilizar! Todo o externo
ficou turvo e embaçado dentro daquela bolha envoltória na qual – ainda que com
muita atenção, ainda que com muito carinho, ainda que com muitos momentos bons –
por vezes, sentia-se sozinha.
Sozinha como a ausência presente paterna. Um dia, Vera
pegou-se pensando nas similaridades entre o hiato que era seu pai em sua vida e
o hiato que, sem querer, Paul também era. “Arquétipos”, refletiu. E o que é a
jornada dessa vida se não ir além dos arquétipos?
Pagou preços altos por ir além. Família, amigos, colegas –
ninguém entendia o que Vera estava fazendo com Paul. Educados com ele, francos
com ela.
- Eu não entendo o que você viu nesse cara!
- Pelo amor de Deus, você merece coisa melhor!
- Que futuro vai ter um cara que trabalha com os pais?
Estagnado desse jeito, você carrega esse cara nas costas...!
Houve até um dia no qual recebeu a seguinte mensagem:
- A pessoa que é a pessoa pra você olha e não consegue
entender o que você viu nesse cara! O que você tá fazendo com ele, a pessoa não
entende!
- Mas a pessoa que é para mim está próxima? – ah, curiosidade
de Vera por respostas era ilimitada!
- Sim, está! A pessoa está do seu lado! – foi a resposta que
recebeu.
Mas quem era “a pessoa”? Não soube. Claro que não sabia!
Olhava transtornada para os lados em busca de pistas sobre isso... mas nenhuma
conclusiva. Todas enganosas, envoltas em névoa, apontando pra nãos e “talvezes”
frágeis. Nenhuma que apontasse a direção certa. E continuou “a experiência de
ir além dos arquétipos” – porque, afinal, decidiu ir até o fim dela.
Foi até o fim das noites de vazio e decepção. De tentar
empurrar adiante uma persona que
vociferava verdades, mas não as vivia. De ir adiante e ver Paul ficando feliz
com a mesmice, com a rotina, com o tudo do jeito que sempre foi – ainda que
dissesse que queria mudar com convincente ênfase.
Vera – sempre disposta a viver as verdades de sua essência,
de se desafiar, de ir um pouco além no alcance de seus muitos sonhos-metas –
vivia uma mentira. A mentira de um longo e estável relacionamento de “amor dito”
e “amor não-vivido”. E ainda assim, por mais que doesse, por mais que chorasse,
por mais que por vezes quisesse correr dali – ainda assim, vivia. Vivia para
entender e contar histórias que tivessem dilemas cotidianos que dessem profundidade
ao seu ofício de contar histórias. Por todos aqueles que vivem vidas vazias de
sentido. Por todos aqueles que vivem mais aparências do que deveriam. Por todos
aqueles que mantêm o status quo. Por
comodismo, por carência – por não ousar ir além.
Quando olhou ao redor, era como uma terra devastada. Longe
dos amigos. Longe da família. Naquela redoma onde só os mais persistentes
sabiam como adentrar sem pedir licença. A todos, Vera dizia:
- Calma, não vai ser para sempre! Eu preciso ir até o fim e
encerrar este capítulo!
O início do fim veio em uma noite na cozinha. Sandra, mãe de
Paul – uma mulher muito ativa, objetiva e decidida, ao contrário do filho – vociferou
a ele:
- Paul, eu não sei o que a Vera tá fazendo contigo, meu
filho. Eu, se fosse ela, já tinha terminado faz tempo!
Então, entendeu que aquele era o sinal de que... já bastava
daquilo! Mas... como sair daquela redoma impermeável? Como achar ar fresco?
Os finos véus do cotidiano prendiam a disposição para o fim
como se feitos de aço. Quanto mais se debatia para sair, mais presa se via. Foi
quando se olhou no espelho pela primeira vez.
Agora, naquela noite de véspera de dia do rock, tocava Better Man, do Pearl Jam. Uma lágrima
escorria no rosto cansado e nas olheiras fundas de Vera. E a Verdade era que
aquele rosto, aquelas olheiras, aqueles ombros eram de Paul. Ela se havia
transformado naquilo que tanto criticava também. Que tanto apontava também. Que
tanto julgava também.
She practises her
speech.
Era criou um personagem para dar força àquelas falas.
Memories back when she was young and strong and waiting for the world to
come along.
E praticou. Uma vez, duas vezes, três vezes. Um mês, dois
meses. Titubeando, ainda, decidiu marcar um dia, um deadline. Para ter mais certeza, buscou dos conselhos de quem sabia
quais eram as respostas.
She dreams in color
She dreams in red
Can’t find a better man
Sim, podia. Se pôde ter forças para ir tão longe, tinha
forças para ir até o fim. Enquanto secava o rosto, Vera lembrou-se das suas
covardes tentativas de fazê-lo terminar com muito mais vergonha do que a
iniciativa que tinha em mente. Afinal, para ele tava tudo bem. Ele via nela os
filhos que ela nem queria lhe dar. Ele via a casa no lugar ermo, escuro e afastado
do mundo que ela não suportava nem pensar. Ele estava feliz com aquela mesmice
de vida de menino mais velho que ela
não conseguia conceber enquanto um dia a dia embaixo do mesmo teto. Não – ficou
claro que o ponto final dessa narrativa seria à Vera.
Recordou, ainda, de tempos mais antigos e da promessa que um
enigmático amigo de sua família então lhe fez:
- Quero que você me prometa, Vera, que fará de tudo para ser
feliz. E que fará de tudo para não ser infeliz.
- Si-si-sim, eu... eu prometo. – respondeu uma jovem Vera que
nem entendia a profundidade da promessa, do compromisso que isso exigia. Passar
por isso lhe fez reconhecer o verdadeiro peso escandido do enunciado. E isso
lhe deu força.
Respirando profundamente, repetiu o texto quase mecânico que
por tanto tempo desenvolvera para aquele personagem tão investido de si mesma.
Foi dormir. No dia seguinte, despediu-se como sempre da família dele, de modo
quase mecânico. Havia no ar uma leve névoa de inverno, que não escondeu as copiosas
lágrimas resistentes de Paul, e as lágrimas que Vera não pôde conter. Só porque
é triste o fim. Levantaram-se, abraçaram-se, sem ofensas, apenas dor.
Ela andou metade do caminho pra casa, e na outra metade,
pegou uma condução. Enfim, virara a folha e recomeçava. A redoma quebrou-se e
do lado de fora, nada era mais o mesmo. Com que esperança tola ela havia se
agarrado a alguma noção de que tudo esperaria imóvel o tempo do fim? Serviu
enquanto força, não enquanto fato.
Mas seguiu. Um dia, sabia, transformaria aquilo tudo em arte.
Quando fosse madura o suficiente para racionalizar esse tipo de coisa. Quando o
tempo certo viesse, e as palavras não fossem tão fugidias, não fossem de
personagens, mas fossem de fábula e verdade.
Instantaneamente. Parecia ter aliviado duas toneladas dos
ombros. Voltou a sorrir, a arquear os ombros, a olhar pra frente e a encontrar
contentamento no presente. Como por mágica, amigos antigos lembraram-se dela
para perguntar um “E aí? Beleza?”
Beleza. Sua tia disse que se arrependeria. Será?... Ideias
fixas podem ser um martelo, um martírio que atravanca o caminho. Ao menos, teve
coragem para ver, viver, aprender e perder cascas continuamente.
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