Madeleine Alves
Em um tempo tão estranho, entre
desaparecimentos de seres viventes, vazios e lacunas, decidi que cada amigo meu
que parta terá um ritual específico. Algum que me faça fazer jus ao tipo de
conexão com que tive com essa pessoa. Talvez, este seja o mais público, uma vez
que seja feito de texto e palavras — o universo do Marcão.
O
modo como eu conheço os jornalistas é, em geral, muito diferente de como os
jornalistas e professores de jornalistas se conhecem. Estou fadada a virar
amiga dos professores dos meus amigos. Para minha sorte, porque, assim, me
ensinam tudo aquilo que não se ensina em uma aula. O Marcão, eu conheci em
2007, em Letras. O TCC era sobre o uso da linguagem não-verbal no BBB. Talvez
dispensasse dizer que na sala — um sábado à tarde — só havia o meu colega apresentando
(sem nem a família presente), eu passando os slides e a banca. O tema era pouco
prestigioso na nossa área, o que deu um trabalhão para meu colega de curso
achar um examinador caridoso que topasse avaliar o trabalho. Conseguiram no
Jornalismo, que ficava do outro lado da rua. Não é de hoje que as mentes e
sensibilidades das pessoas precisam de um pouco mais de expansão.
O
meu colega fez sua exposição em 20 minutos com a nossa visão acadêmica sobre a
comunicação — invariavelmente, uma sobreposição de teorias sobre teorias
(especialidade de Letras) que vão por um caminho diferente do que analisam os
comunicólogos. Acabada a explanação, era a vez de o examinador dar seu parecer.
O que se seguiu foi um show à parte, com outros 20 minutos nos quais o Marcão
compilou o que havia de melhor para que nós — leigos na área dele — entendêssemos
a outra via, um outro ponto de vista mais ligado à prática e ao fazer
televisivo. Foi a primeira pessoa que nos falou que o que move os reality shows são os conflitos. E ainda
estávamos ali pelo BBB 4 ou 5. Não lembro qual a nota do meu amigo: mas por
tudo o que ele, eu e a orientadora aprendemos com Marcão, este tirou 10. Pena
de quem perdeu. Descemos a Conselheiro Nébias trocando ainda mais idéias sobre
filmes e um tal vazamento de Tropa de
Elite na internet, papo bom mesmo! Não nos vimos mais por anos.
O
apelido veio no lançamento de um dos livros da Regina Alonso. Marcão já havia
publicado algumas crônicas na cidade e escreveu o prefácio do livro dela. Em um
dado momento do lançamento, houve uma pausa para que os colaboradores do livro
dessem uma palavra sobre como foi participar deste trabalho. E lá estava Marcão
falando do exato momento no qual o convite para o prefácio chegou e como isso
transformou uma tarde difícil. Veja bem: ele FALOU em linguagem de crônicas,
contando o momento como se escrevesse um texto. Como em geral essas ocasiões
são bem ruidosas, deixei para comentar num post dele que sim: ele era o
Homem-Crônica! Não lembro bem o feedback mas imagino que deve ter se rido
disso.
Marcus
Vinicius era de um respeito bem raro de se ver com o texto em nossos tempos.
Não havia palavras excessivas, exageros de expressão ou afetações. Como alguém
mais do que acostumado a contar o cotidiano com palavras que todos pudessem
entender. Nunca conversamos sobre quais seriam seus cronistas favoritos, mas
sempre que o lia, lembrava de nomes como Rubem Braga e Moacyr Scliar. Uma vez,
me mandou na lista do whatsapp uma que era da mesma linhagem das do Veríssimo,
com o jogo dos diálogos dos personagens. Por meio de seus microcontos e
crônicas, percebíamos a fina visão que tinha sobre os detalhes do cotidiano, o
faro para as boas histórias que ninguém vê. Generosamente, por meio do texto,
nos deixava participar de sua visão de mundo, suas indignações e mesmo desafios
da sua vida. Alguém tão atento à tessitura do texto só poderia ter criado a
editora que criou com a jornalista e cronista Beth Soares: a Ateliê de Palavras.
Um nome que deixa bem claro que ainda há gente no mundo que acredita que
palavras não sejam artefatos para serem jogadas a esmo. A amizade e a admiração
com eles ficou ainda mais próxima com a publicação de dois poemas meus em O Lobo, O Urso e a Cura. Neles,
encontrei e encontro muitas palavras e atitudes de apoio e incentivo, tanto
respeito e admiração pelo meu trabalho que espero que eu consiga deixar claro
que a recíproca é 100% verdadeira.
De
Marcão, recebi o feedback para meu próximo trabalho numa entrevista a que foi
acompanhado do Vini — um recorrente personagem seu. No caso dele, começava
sempre com Nada como ter um filho de X
anos que... — ao que seguia à narração de um fato visto sob a percepção do
filho. Conhecer o Vini pra mim foi quase como se a J. K. Rowling me
apresentasse o Harry Potter: alguém sobre quem você já leu tanto que se lembra
de cenas e particularidades a ponto de formar uma imagem mental, mas que ainda
não conhecia pessoalmente. Foi também Marcão que me fez um convite para
escrever o texto mais difícil que já escrevi: uma crônica bem particular. Eu
não sou acostumada a escrever crônicas e — o que foi ainda mais desafiador — eu
decidi por um viés absolutamente pessoal. Entreguei com atraso no deadline,
olhos copiosamente chorosos enquanto uma mão automática e um reconhecimento
abissal em um período de pandemia — que deixa os nervos de qualquer um à flor
da pele — transformava em texto e materialidade a experiência de criação de longe
mais desafiadora que enfrentei. Foi como atravessar um limiar, uma fronteira,
um mar aberto. É interessante como isso me curou. Como os trabalhos da Ateliê de Palavras têm a ver com
Jornalismo e Literatura — mas também com cura.
É
igualmente triste que uma doença para a qual não haja cura — mas procedimento e
vacina sim — tenha levado de nós o melhor cronista que Santos teve na sua
história recente. Eu não sou ingênua, leitor, a ponto que querer convencer
ninguém das minhas convicções porque, quando alguém não está disposto a
entender, não adianta nem gritar. Deixo aqui, então, o som do silêncio
ensurdecedor desse ritual para um amigo a quem eu gostaria de não ver
esquecido. Ficam os textos os blogs, os livros. Como tantos outros, que desapareceram em um triste e escuro tempo
sem que a gente pudesse dizer adeus.