"Pequena história destinada a explicar como é precária a estabilidade dentro da qual acreditamos existir, ou seja, que as leis poderiam ceder terreno às exceções, acasos ou improbabilidades, e aí é que eu quero ver" (Julio Cortázar)


A Produtora Signos Possíveis começou neste blog de escrita. Aqui você encontrará uma seleção de textos escritos e escolhidos por Madeleine Alves. Para saber mais sobre o trabalho da produtora, procure a gente nas redes sociais!


quarta-feira, 7 de setembro de 2016

A Musa Impassível

Madeleine Alves


“Retirar o invólucro a um objeto, destroçar a sua aura, são características de uma percepção, cujo ‘sentido para o semelhante no mundo’ se desenvolveu de forma tal que, através da reprodução, também o capta no fenômeno único.”
Walter Benjamin – A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica



A história da Musa Impassível sempre causou em mim grande fascínio. Para os que não conhecem, a Musa Impassível é uma estátua em mármore carrara de 2,80m e 3 toneladas, criada pelas habilíssimas mãos de Victor Brecheret. Sua origem começa na literatura, com o poema de mesmo nome de Francisca Júlia da Silva Munster, mais conhecida como poetisa Francisca Júlia.






I

Musa! um gesto sequer de dor ou de sincero
Luto jamais te afeie o cândido semblante!
Diante de um Jó, conserva o mesmo orgulho; e diante
De um morto, o mesmo olhar e sobrecenho austero.

Em teus olhos não quero a lágrima; não quero
Em tua boca o suave e idílico descante.
Celebra ora um fantasma anguiforme de Dante,
Ora o vulto marcial de um guerreiro de Homero.

Dá-me o hemistíquio d'ouro, a imagem atrativa;
A rima, cujo som, de uma harmonia crebra,
Cante aos ouvidos d'alma; a estrofe limpa e viva;

Versos que lembrem, com seus bárbaros ruídos,
Ora o áspero rumor de um calhau que se quebra,
Ora o surdo rumor de mármores partidos.

II

Ó Musa, cujo olhar de pedra, que não chora,
Gela o sorriso ao lábio e as lágrimas estanca!
Dá-me que eu vá contigo, em liberdade franca,
Por esse grande espaço onde o impassível mora.


Leva-me longe, ó Musa impassível e branca!
Longe, acima do mundo, imensidade em fora,
Onde, chamas lançando ao cortejo da aurora,
O áureo plaustro do sol nas nuvens solavanca.

Transporta-me de vez, numa ascensão ardente,
À deliciosa paz dos Olímpicos-Lares
Onde os deuses pagãos vivem eternamente,

E onde, num longo olhar, eu possa ver contigo
Passarem, através das brumas seculares,
Os Poetas e os Heróis do grande mundo antigo.

(Publicado no livro Mármores - 1895)

A poetisa logo alcançou reconhecimento entre os poetas parnasianos e publicações de jornais. Com sua morte, o Governo do Estado de São Paulo encomendou a criação ao jovem Brecheret, então bolsista em Paris. Com base nos escritos de Francisca Júlia, o escultor criou, de 1921 a 1923, um trabalho digno das seguintes palavras de Menotti Del Picchia: “É a Musa Impassível, um mármore (...) criado pelo cinzel triunfal de Victor Brecheret. (...) Na augusta expressão dos seus olhos, do seu busto erecto, das suas mãos ritmicas, há toda a grandeza e a beleza daquela musa impassível da formidável parnasiana que concebeu e realizou a ‘Dança das Centauras’. O estatuário foi bem digno da poetisa.” 

A escultura engrandeceu o túmulo da poetisa até 2006. A urbanização desenfreada, a ação do tempo, a chuva ácida – tudo representava um perigo para a escultura. Em delicada operação, a estátua foi transferida para a Pinacoteca do Estado, no Parque da Luz, onde está até hoje em exposição. Em 2011, A Musa Impassível tornou-se filme, dirigido por Marcela Lordy.



O poema, a foto da escultura imponente, o filme, a história. De tudo, veio um fascínio. Mas, muito mais, desse mito da “mulher impassível”, inatingível. Dessa que não se emociona, não sente dor, não ama com ardor. Acima dos sentimentos mundanos, traz na lira o verso perfeito de métrica harmônica. Um arquétipo admirável... de encanto estarrecedor...

Dia desses, fui à Pinacoteca apreciar a escultura real. Deixei-a por último, como gran finalle.

Lá estava ela, no pátio. Não havia sido a escultura quem mudou. Quem mudou fui eu.



Obviamente, o trabalho de Brecheret é primoroso em seu panejamento, os volumes, os contornos. Em detalhes, tudo dela me repelia. Em detalhes, toda aura se destruía. As mãos alongadas evocavam o terror e era como se sua atmosfera assombrosa e mortífera pairasse sobre mim. Bela e assustadora.

Refleti um momento sobre minha própria existência. De certo modo, o cinzel havia rachado o mármore. Sulcos profundos atravessaram a pedra e provocaram danos irreversíveis. Restou apenas o coração selvagem e pulsante que o mármore não mais esfria. Os ídolos outrora erguidos foram acidamente destruídos pela acidez dessa chuva que a realidade goteja. O comedimento é feito de pedras frias: o convencionalismo, o ideal-socialmente aceito, as expectativas alheias. Dentro dele, morre e jaz o melhor de nós: um frustrado e perdido amor pelos sonhos, pelas pessoas, pelas causas.

Para que nada mais vire lápide tumular, sobrou aquela que não mais sublima, que não mais aceita – mas aquela que pulsa. Aquela para quem meias palavras, meias verdades e ¾ de lirismo não são mais suficientes. É preciso o Verbo – inteiro, direto, indicativo de algo. Sê todo em cada coisa.E que venha a lágrima, mas também venha o riso. Venha o que vier.


Enquanto a minha musa se destruía pelo pátio, eu partia passível rumo a esta nova vida na qual ser uma musa impassível é tudo o que não quero ser.

Um comentário:

Unknown disse...

Parabéns!!! Mais uma vez você me tirando da ignorância, cabe a mim silenciar, aceitar, pegar seu caminho da sublimação. Entretanto, tenho uma dor implacável que tenho fé que um dia será substituído por alegria, harmonia. Te amo minha doce Madeleine. Bora Ailda refletir. Você é simplesmente maravilhosa linda poeta.