Madeleine Alves
“Retirar o invólucro a um objeto, destroçar
a sua aura, são características de uma percepção, cujo ‘sentido para o semelhante
no mundo’ se desenvolveu de forma tal que, através da reprodução, também o capta
no fenômeno único.”
Walter
Benjamin – A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica
A história da
Musa Impassível sempre causou em mim grande fascínio. Para os que não conhecem,
a Musa Impassível é uma estátua em mármore carrara de 2,80m e 3 toneladas,
criada pelas habilíssimas mãos de Victor Brecheret. Sua origem começa na
literatura, com o poema de mesmo nome de Francisca Júlia da Silva Munster, mais
conhecida como poetisa Francisca Júlia.
I
Musa! um gesto sequer de dor ou de sincero
Luto jamais te afeie o cândido semblante!
Diante de um Jó, conserva o mesmo orgulho; e diante
De um morto, o mesmo olhar e sobrecenho austero.
Em teus olhos não quero a lágrima; não quero
Em tua boca o suave e idílico descante.
Celebra ora um fantasma anguiforme de Dante,
Ora o vulto marcial de um guerreiro de Homero.
Dá-me o hemistíquio d'ouro, a imagem atrativa;
A rima, cujo som, de uma harmonia crebra,
Cante aos ouvidos d'alma; a estrofe limpa e viva;
Versos que lembrem, com seus bárbaros ruídos,
Ora o áspero rumor de um calhau que se quebra,
Ora o surdo rumor de mármores partidos.
II
Ó Musa, cujo olhar de pedra, que não chora,
Gela o sorriso ao lábio e as lágrimas estanca!
Dá-me que eu vá contigo, em liberdade franca,
Por esse grande espaço onde o impassível mora.
Musa! um gesto sequer de dor ou de sincero
Luto jamais te afeie o cândido semblante!
Diante de um Jó, conserva o mesmo orgulho; e diante
De um morto, o mesmo olhar e sobrecenho austero.
Em teus olhos não quero a lágrima; não quero
Em tua boca o suave e idílico descante.
Celebra ora um fantasma anguiforme de Dante,
Ora o vulto marcial de um guerreiro de Homero.
Dá-me o hemistíquio d'ouro, a imagem atrativa;
A rima, cujo som, de uma harmonia crebra,
Cante aos ouvidos d'alma; a estrofe limpa e viva;
Versos que lembrem, com seus bárbaros ruídos,
Ora o áspero rumor de um calhau que se quebra,
Ora o surdo rumor de mármores partidos.
II
Ó Musa, cujo olhar de pedra, que não chora,
Gela o sorriso ao lábio e as lágrimas estanca!
Dá-me que eu vá contigo, em liberdade franca,
Por esse grande espaço onde o impassível mora.
Leva-me longe, ó Musa impassível e branca!
Longe, acima do mundo, imensidade em fora,
Onde, chamas lançando ao cortejo da aurora,
O áureo plaustro do sol nas nuvens solavanca.
Transporta-me de vez, numa ascensão ardente,
À deliciosa paz dos Olímpicos-Lares
Onde os deuses pagãos vivem eternamente,
E onde, num longo olhar, eu possa ver contigo
Passarem, através das brumas seculares,
Os Poetas e os Heróis do grande mundo antigo.
(Publicado no livro Mármores - 1895)
A poetisa logo alcançou
reconhecimento entre os poetas parnasianos e publicações de jornais. Com sua
morte, o Governo do Estado de São Paulo encomendou a criação ao jovem
Brecheret, então bolsista em Paris. Com base nos escritos de Francisca Júlia, o
escultor criou, de 1921 a 1923, um trabalho digno das seguintes palavras de
Menotti Del Picchia: “É a Musa
Impassível, um mármore (...) criado pelo cinzel triunfal de Victor
Brecheret. (...) Na augusta expressão dos seus olhos, do seu busto
erecto, das suas mãos ritmicas, há toda a grandeza e a beleza daquela musa impassível da
formidável parnasiana que concebeu e realizou a ‘Dança das Centauras’. O
estatuário foi bem digno da poetisa.”
A escultura engrandeceu o túmulo da
poetisa até 2006. A urbanização desenfreada, a ação do tempo, a chuva ácida –
tudo representava um perigo para a escultura. Em delicada operação, a estátua
foi transferida para a Pinacoteca do Estado, no Parque da Luz, onde está até
hoje em exposição. Em 2011, A Musa
Impassível tornou-se filme, dirigido por Marcela Lordy.
O poema, a foto da escultura
imponente, o filme, a história. De tudo, veio um fascínio. Mas, muito mais,
desse mito da “mulher impassível”, inatingível. Dessa que não se emociona, não
sente dor, não ama com ardor. Acima dos sentimentos mundanos, traz na lira o
verso perfeito de métrica harmônica. Um arquétipo admirável... de encanto
estarrecedor...
Dia desses, fui à Pinacoteca
apreciar a escultura real. Deixei-a por último, como gran finalle.
Lá estava ela, no pátio. Não
havia sido a escultura quem mudou. Quem mudou fui eu.
Obviamente, o trabalho de
Brecheret é primoroso em seu panejamento, os volumes, os contornos. Em
detalhes, tudo dela me repelia. Em detalhes, toda aura se destruía. As mãos
alongadas evocavam o terror e era como se sua atmosfera assombrosa e mortífera
pairasse sobre mim. Bela e assustadora.
Refleti um momento sobre minha
própria existência. De certo modo, o cinzel havia rachado o mármore. Sulcos
profundos atravessaram a pedra e provocaram danos irreversíveis. Restou apenas
o coração selvagem e pulsante que o mármore não mais esfria. Os ídolos outrora
erguidos foram acidamente destruídos pela acidez dessa chuva que a realidade
goteja. O comedimento é feito de pedras frias: o convencionalismo, o
ideal-socialmente aceito, as expectativas alheias. Dentro dele, morre e jaz o
melhor de nós: um frustrado e perdido amor pelos sonhos, pelas pessoas, pelas
causas.
Para que nada mais vire lápide
tumular, sobrou aquela que não mais sublima, que não mais aceita – mas aquela
que pulsa. Aquela para quem meias palavras, meias verdades e ¾ de lirismo não
são mais suficientes. É preciso o Verbo – inteiro, direto, indicativo de algo. Sê todo em cada coisa.E que venha a
lágrima, mas também venha o riso. Venha o que vier.
Enquanto a minha musa se destruía
pelo pátio, eu partia passível rumo a esta nova vida na qual ser uma musa
impassível é tudo o que não quero ser.
Um comentário:
Parabéns!!! Mais uma vez você me tirando da ignorância, cabe a mim silenciar, aceitar, pegar seu caminho da sublimação. Entretanto, tenho uma dor implacável que tenho fé que um dia será substituído por alegria, harmonia. Te amo minha doce Madeleine. Bora Ailda refletir. Você é simplesmente maravilhosa linda poeta.
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