"Pequena história destinada a explicar como é precária a estabilidade dentro da qual acreditamos existir, ou seja, que as leis poderiam ceder terreno às exceções, acasos ou improbabilidades, e aí é que eu quero ver" (Julio Cortázar)


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segunda-feira, 26 de maio de 2008

GUIA TURÍSTICO












Jaílson Gomes

Inacreditável!

Eu estava diante das ruínas de um anfiteatro romano. Esperara tanto por aquela ocasião e agora, dominado por emoções provocadas por descargas de adrenalina na corrente sangüínea, não tinha com quem compartilhar aquele momento. Por um instante, pensei em estar sonhando. Cerrei os olhos, respirei profundamente e, na certeza de que não estava sendo vítima de imagens oníricas, procurava visualizar a vida cotidiana daquele lugar, tal como teria sido dezoito séculos atrás. Para minha surpresa, ao abrir os olhos, estava eu, lendo avidamente um guia turístico com informações sobre Saint Albans. Teria eu sonhado acordado? Ou como dizem os ingleses, “Had I been daydreaming?”.

Cidade inglesa aprazível, situada aproximadamente a quarenta quilômetros ao norte de Londres, Saint Albans é um daqueles lugares fantásticos, com uma história riquíssima, onde passado e presente confundem-se. O sítio da atual cidade era habitado desde a Idade do Ferro. Depois vieram os celtas, os romanos, os saxônicos e os normandos. Esses povos deixaram uma herança cultural vastíssima, em outras palavras, todos contribuíram para a formação da The British Heritage. muita história naquele lugar. Tanta história, que uma simples visita à cidade proporciona uma sensação difícil de explicar. É algo como embarcar numa máquina do tempo e voltar a um passado distante, muito distante. Todas essas informações estavam naquele guia e quanto mais lia, mais me sentia atraído por aquela fonte inesgotável de história. Estava decidido. No próximo domingo, dia de minha folga, pegaria o trem na estação ferroviária de Saint Pancras, ao norte de Londres, e iria ao encontro do sítio arqueológico de Verulamium que fora, no apogeu do vasto domínio romano, a terceira maior cidade na Britânia, província mais setentrional do império.

Era uma manhã fria e úmida, típica do final do inverno inglês. Pela janela embaçada do trem, que seguia velozmente para Saint Albans, eu admirava a paisagem rural, ao mesmo tempo em que imaginava quantas vezes aquele caminho havia sido percorrido pelas caravanas de comerciantes que, partindo de Londinium, abasteciam as cidades satélites ao norte da província: Verulamium, Lugdunum e Sulloniacis. Esses mercadores, vindos da capital da província, chegavam à Verulamium pelo portão sul, hoje conhecido como The London Gate. Era uma viagem relativamente rápida e segura. O trem seguia seu destino, deslizando suavemente sobre os modernos trilhos da British Rail.

Mas por que a cidade de Saint Albans recebera tal nome?”, perguntava eu. “Que relação havia entre Verulamium, nome dado pelos romanos, e Saint Albans, nome adotado pelos normandos?” Historia se encarregaria de responder às minhas indagações. E eu pressentia que tinha um encontro marcado com ela. Em breve, Historia estaria ali, diante de mim, expondo seus fatos, interpolando suas eras, descrevendo personagens e lugares, deflagrando seus conflitos e envolvendo-me com sua maneira irrepreensível de contar história. Historia, para quem não sabe, é uma grande amiga minha. Apesar de passarmos bons momentos juntos, devo admitir que nosso relacionamento não é, por assim dizer, uma simbiose. Em nosso relacionamento, eu sou o único beneficiado.

O trem chegou pontualmente às dez horas. A temperatura havia caído um pouco mais. O vento chicoteava meu rosto e a sensação térmica era como mergulhar as mãos em águas geladas. O céu assumira uma coloração carregada de um tom cinza escuro, denunciando uma chuva que não tardou a cair. Devo admitir que fiquei um tanto quanto desapontado com as primeiras imagens em Saint Albans. As casas, os edifícios públicos, as ruas, as praças e os jardins pareciam não corresponder àquelas fotos do guia turístico. Procurei avidamente por sinais que indicassem a era vitoriana ou a idade média ou a ocupação normanda ou o período saxônico ou o longo domínio romano ou o longínquo passado celta. Tudo que podia ser visto eram as típicas e cansativas fileiras de sobrados geminados, erguidos após a segunda guerra mundial, no período de reconstrução do país. Procurei não deixar me abater por aquelas primeiras e vagas impressões. Munido de um Street Finder e parecendo saber o caminho a percorrer, mentalmente perguntei-me: “Quo vadis?” A resposta veio automaticamente “Ad Verulamium.”

Era isso. Precisava sair dali. Deixar aquele espaço repleto de edificações do século XX, que em nada sugeriam o passado glorioso descrito no guia turístico! Iria procurar o anfiteatro romano, o fórum, a basílica, a cúria, o templo triangular dedicado à Ceres, os arcos triunfais e o Hypocaust[1] . E ainda tinha um encontro com Historia.

Caminhando contra o suave aclive da Victoria St. até a confluência com a St. Peter St., bem em frente à prefeitura, meus olhos foram forçosamente capturados por aquele grande, apelativo e inconfundível eme amarelo sobre um fundo vermelho.

Não. Definitivamente não. Não ali em Saint Albans, berço de um passado glorioso, cidade que traz em seu seio as marcas indeléveis do apogeu de uma civilização grandiosa. Será que tudo que havia restado do majestoso SPQR romano era o logotipo de uma multinacional representado por uma consoante bilabial sonora?!

Bem, romanos e americanos à parte, com suas políticas imperialistas, sigamos adiante. Imediatamente, num gesto de repúdia e indignação, virei em direção oposta, e finalmente pude vislumbrar os primeiros sinais da British Heritage. Estava descendo a Chequer St., em direção à London Road, quando visualizei a Torre do Relógio (Clock Tower), construída entre 1402 e 1412, que naquela época era o centro da cidade medieval.

Havia voltado no tempo quase seis séculos. A cidade moderna não estava : havia simplesmente desaparecido diante de meus olhos! A era vitoriana e o período elisabetano haviam ficado para trás. Para minha surpresa, pude observar Historia, Praeterius e Tempus sinalizando com o dedo indicador para que eu os seguisse através do portal que ficava abaixo da Torre do Relógio. Fiquei feliz pela receptividade dos três irmãos. Ao passar pelo portal, e ter voltado no tempo mais uns quatro séculos (era o ano de 1077) estava ela, diante dos meus olhos, toda imponente e majestosa: a catedral de Saint Albans.



Nesse momento, observei que a cidade medieval desvanecia-se e, em seu lugar, uma pacata vila normanda ia surgindo aos poucos. O idioma local não era o inglês. A nobreza falava uma forma de francês antigo e os camponeses saxônicos utilizavam um falar germânico, mais antigo ainda. Os clérigos, por sua vez, tinham o latim como vernáculo. Minha anfitriã, Historia, sempre prestativa, passava-me muitas informações sobre aquele templo. Era impressionante o seu conhecimento sobre aquele lugar. Dotada de uma memória invejável, ela descrevia os eventos, relacionava-os, interpretava-os, enumerava-os, tudo dentro de uma ordem cronológica linear. Praeteritus, por sua vez, ficava ali, quietinho, imóvel e distante de nós, enquanto Tempus, taciturno como sempre, balbuciava algumas palavras ininteligíveis. Entretanto, a presença dos irmãos era imprescindível, pois sem eles, Historia era incapaz produzir fatos históricos.

Meus amigos deixaram-me à vontade. Colocaram-se à disposição para eventuais dúvidas e, diligentemente, foram assessorar um guia turístico que orientava um grupo de visitantes japoneses. Aproveitei a ocasião para explorar cada cantinho da catedral: o altar mor, o relicário de Santo Albano, as pinturas medievais, a torre etc. Mas o melhor ainda estava por vir. Deixei a catedral pela grande porta leste localizada, segundo Historia, defronte do exato local do martírio de Albano. Albano teria sido o primeiro mártir cristão em solo britânico. Vamos precisar voltar no tempo outros oito séculos, mais precisamente no ano 209 d.C., para entender os fatos que culminaram com a morte, por decapitação, desse cidadão romano cristão.

Assim que saí do templo, atravessando a porta leste, vi-me no topo de uma colina sobre a qual os abades, em longos períodos intermitentes, haviam erguido a catedral. Nesse momento, Historia aproximou-se e orientou-me quanto ao caminho a tomar.

- Para chegar a Verulamium, basta descer a encosta leste da colina.

- Obrigado, Historia. Vou agora mesmo.

Ao virar à esquerda, tomando a direção indicada por minha amiga e descendo a colina, pude vislumbrar uma grande área, verde e aberta, que hoje em dia é conhecida por Verulamium Park, mas que no início do século III era a localização do terceiro maior conglomerado urbano romano em terras britânicas. Tal como uma criança, que se contagia facilmente com qualquer tipo de brincadeira, desci a colina em disparada, esquecendo de minha amiga por um instante. Afinal de contas, aquela seria a primeira vez em minha vida que eu estaria pisando em solo romano, apesar de não estar em Roma. De longe, podia avistar o ir e vir dos habitantes, a grande muralha circundante e o rio Ver que, correndo no sentido norte-sul, acompanhava toda a extensão externa da porção oriental da muralha.

A garoa havia cessado, mas o frio intenso fazia subir um ar pungente e gelado que secava as minhas narinas. Podia-se sentir a umidade e também visualizá-la por sobre as fortificações do grande muro e troncos de árvores. Um olor espesso e saudável, proveniente das folhas caídas e do solo saturados pela água da chuva, permeava o ar. Ao chegar à margem do rio, atravessei uma ponte em arcos que, a julgar pelo seu porte e solidez, devia ser o principal acesso à cidade para quem vinha do oeste. Virei à esquerda e prossegui por uma estrada que beirava a muralha. Naquele lugar, parei para apreciar a imponente catedral sobre a colina. Nesse instante, apenas a colina podia ser avistada – a catedral e a vila normanda, como em um passe de mágica, haviam sumido. Tempus havia pregado mais uma de suas peças.

Após caminhar algumas centenas de metros, atingi a extremidade da muralha que, naquele ponto, fazia uma curva acentuada à direita para, desta vez, proteger a porção sul da cidade. Eu estava muito próximo ao The London Gate e podia ver que, de Londinium, através da via romana, chegavam os mercadores trazendo, além de víveres e suprimentos, notícias da capital da província e da distante Roma. Inúmeros habitantes de Verulamium jamais haviam viajado além do grande canal. Tudo que sabiam sobre a cidade eterna era obtido através dos relatos de pessoas recém chegadas. Muitos desses moradores sedentários descendiam dos primeiros romanos que chegaram após sucessivas tentativas de invasões e permaneceram para proteger, administrar e garantir a posse da província. A primeira tentativa de conquistar a Britânia ocorreu por volta de 54 a.C., quando Júlio César e suas legiões cruzaram o canal. Mas foi o imperador Cláudio que, quase cem anos depois, em 43 d.C., utilizando o caminho pavimentado por Júlio César, definitivamente invadiu e conquistou a distante província, anexando-a à Pax Romana. Dentre os recém chegados figuravam, além dos mencionados comerciantes, os magistrados, soldados, aventureiros, escravos, degredados e gladiadores. Cada um à sua maneira, e para a felicidade do povo, abastecia o lugar com informações recentes sobre o império e sua capital.

Minha viagem estava próxima ao fim. Mas Historia ainda guardava uma última surpresa. Quando estava atravessando o imponente portão sul – observei que ele era protegido por dois soldados de guarda, com seus uniformes de invernonão pude deixar de ver que uma multidão exaltada caminhava em minha direção. À frente, de mãos atadas e trajando um uniforme de oficial da guarda romana, vinha um homem que estava sendo ultrajado por um grupo de pessoas ensandecidas que gritavam: “Morte ao traidor do imperador! Morte ao infiel!”. A despeito da turba que o insultava, aquele homem exibia um semblante de tranqüilidade e imperturbabilidade.

Aproximei-me, de uma senhora que, diferente de mim, não estava nem um pouco perplexa e indignada e que parecia aprovar toda aquela comoção. Lancei-lhe um olhar inquiridor e ela explicou-me tratar-se de Albanus, comandante da guarda, que acabara de ser julgado no anfiteatro e condenado à morte por decapitação – naquele tempo, na Roma antiga, essa era forma de pena de morte reservada aos cidadãos romanos, um privilégio, segundo eles – e que estava sendo levado da cidade ao topo da colina, para ter sua sentença levada a cabo. Perguntei-lhe qual teria sido sua falta.

- Ele foi acusado de dar abrigo a um tal de Amphibalus. Dizem por que Amphibalus, seguidor desta superstição que se espalha rapidamente pelo império, converteu Albanus durante sua estada.

- Que superstição, minha senhora?

- Trata-se daquela seita de fanáticos que coloca um galileu acima dos poderes imperiais. Em Roma são muitos. Nosso augusto imperador Septimius Severus, que Ceres esteja com ele, parece não conseguir conter o crescimento dessa seita.

- Por Júpiter! Mas nãoclemência para seu crime?

Agindo com naturalidade, procurava disfarçar minha indignação. Fico imaginando o que fariam se descobrissem que sou um cristão da terceira revelação.

- Ofereceram-lhe clemência. Mas com uma condição.

- Qual foi a condição, minha boa senhora?

- Que ele negasse publicamente essa estranha.

- Presumo que tenha recusado.

- Veementemente. E com toda a impassibilidade desse mundo, proferiu o seguinte: “O senhor é o meu pastor, nada me falta; colocou-me num lugar de pastos e converteu a minha alma.” Palavras estranhas para alguém que está para ser decapitado. Não pensas o mesmo?

A jovem senhora, sem esperar por minha assertiva, seguiu o grupo de pessoas e soldados em direção ao patíbulo. Procurei permanecer calmo e indiferente a toda aquela situação. Mas dentro de mim, uma sensação de impotência pulsava junto com o meu coração. Albanus estava prestes a passar para a história, tornando-se o primeiro mártir cristão das Ilhas Britânicas. Por ironia do destino, séculos depois, aquele lugar receberia seu nome. Preasens era imaturo demais para conseguir compreender suas nobres intenções. Futurum lhe reservaria, alguns séculos depois, um lugar de honra na história do cristianismo.

Por um tempo, fiquei acompanhando aqueles loucos até onde a vista podia alcançá-los. Eu nada podia fazer, pois não cabia a mim interferir nos assuntos de Historia. Nada mais me restava senão seguir adiante a fim de concluir minha jornada turística. Atravessei o grande portão, rumo ao teatro romano e, mais uma vez, meus olhos pareciam não saber interpretar as imagens que chegavam ao meu cérebro. O horror dos últimos acontecimentos privara-me da razão. Verulamium não estava mais . O templo triangular de Ceres, o anfiteatro, a basílica, o fórum, a cúria, os arcos triunfais, tudo havia evaporado como num passe de mágica. Historia, Praeteritum e Tempus apontavam para o horizonte querendo mostrar-me uma última imagem. Uma luz tênue anunciava as última horas do dia. Por um breve momento, pude observar que um grupo de celtas, da tribo Catuvellaumi, acendia uma fogueira no centro de um acampamento. A noite seria fria. O chefe da tribo, reunido em volta do fogo com seu clã, preparava o seu repertório de histórias. Histórias que haviam sido contadas de geração em geração, desde tempos imemoriais quando seus antepassados forjaram a primeira arma de ferro.

Era a última página do guia turístico. Fechei-o e fiquei imaginando um lugar como Saint Albans, pensando seriamente em incluí-lo no meu próximo roteiro de viagem.



[1] Sistema de aquecimento romano.

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