"Pequena história destinada a explicar como é precária a estabilidade dentro da qual acreditamos existir, ou seja, que as leis poderiam ceder terreno às exceções, acasos ou improbabilidades, e aí é que eu quero ver" (Julio Cortázar)


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sexta-feira, 17 de julho de 2020

Mercy Street

Madeleine Alves


Tudo se passou como se a Existência me chamasse ao seu colo.

Era um dia de sol de quase fim de verão — um verão fresco e chuvoso, nada parecido com o verão de calores e ardores do ano anterior.

Há dias queria fugir do stress cotidiano. Aquela sexta era perfeita para realizar o desejo de praia da alma!

Isso ficou claro assim que pus os pés na areia, afundando-os em sua morna fofura. Uma areia quase exclusiva: era dia comum, todos trabalhavam no asfalto e seu piche tórrido. Caminhava na areia aquecida com a alegria de quem se sente voltar para casa. Pensando bem... sim, eu ali  estava mais em casa do que em qualquer outro lugar...

Uma leve brisa tocava a pele, meus ombros, meus cabelos, como num abraço de boas-vindas sob o céu totalmente azul — não fossem uma nuvem aqui, outra acolá. Estendi a canga no trecho escolhido, de alma agradecida, sorriso nos lábios e fone de ouvido.

A pele, que queimava sob o sol coberta pelo bronzeador, dentro de algum tempo pedia por frescor. Aquele que viria daquela visão que o cotidiano transformou em um papel de parede em 3D.

Quando afundei meu corpo naquele manto azul sem ondas, que se estendia como um espelho matizado do azul do céu, cada célula foi coberta em um banho terno, bento e tépido. Durante a oração que fiz a seguir, a luz do sol iluminou as minúsculas ondas como se houvessem pequenos diamantes reluzentes e inatingíveis por mãos humanas.

Grata estava pelo momento.

Grata estava pelo presente de existir.

Grata estava pela experiência dos sentidos.

Não havia gritos ou sussurros.

Não havia notificações de telefone ou roncos de carros.

Não havia dor ou ofensa de nenhuma espécie.

Apenas aquele abraço da Natureza a penetrar um corpo humano, acolhê-lo em seus Reinos, abraçá-lo em sua fragilidade e no fundo do peito plantar a certeza como semente inabalável de que tudo daria certo.

Quando por fim saí do mar, olhei ao redor. Havia no ar uma atmosfera de sonho, um filtro de ilusão âmbar sobre meus olhos, uma certa névoa sobre das imagens focadas...

... a existência era aquiescência e sensação...

Plena do indizível, deixei aquele lugar após duas horas de comunhão com tudo o que há. Voltei à vida e ao cotidiano.

Na semana seguinte, tudo trancou e o mundo, era só medo, morte e escuridão. 

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