"Pequena história destinada a explicar como é precária a estabilidade dentro da qual acreditamos existir, ou seja, que as leis poderiam ceder terreno às exceções, acasos ou improbabilidades, e aí é que eu quero ver" (Julio Cortázar)


A Produtora Signos Possíveis começou neste blog de escrita. Aqui você encontrará uma seleção de textos escritos e escolhidos por Madeleine Alves. Para saber mais sobre o trabalho da produtora, procure a gente nas redes sociais!


quinta-feira, 24 de novembro de 2016

"Até a Eternidade"

Madeleine Alves

Era um dia triste, mas estava apenas catatônico. Sentado em sua cadeira, mal notava o desfile de parentes; as coroas de flores, os choros e soluços da família eram sons que vinham de um mundo distante.

Amaro só tinha olhos para o esquife. "Esquife", palavra antiga e refinada, quase apagada do vocábulo geral — muito melhor do que aquela com som de coisa que despenca no chão: caixão. Ou talvez o esquife fosse um objeto translúcido, posto que neste momento, a sua frente, sua atenção e sentidos estavam voltados, como há 50 anos, para Dulce.

Dulce partiu.

Toda uma época, Amaro havia sido mourão forte. Dulce era a parte sensível de seu mundo. Naquele momento em que um filme passa na cabeça, era inevitável o flashback: o baile onde se conheceram; as conversas no portão e suas furtivas trocas de olhares; o beijo — meio querido, meio roubado — sob o pé de ipê amarelo e sobre o chão forrado de amarelos caídos; o sim no altar e os três filhos que se seguiram.

O casamento na igreja era mais uma imposição social-familiar do que uma crença. Amaro, com a fibra de quem passou bocados na vida, transformou-se em um cético com tudo. Ao contrário de Dulce, que era pura fé.

Naquele momento de despedida, Amaro deu-se conta de que haveria grande possibilidade de ter acordado todos os dias após a existência de Dulce graças a momentos bem fugazes. Pode ser que acordasse para ver o sol iluminar os cabelos acobreados de sua esposa; certamente, só despertava após o aroma de café e alguma música que ela cantarolasse enquanto passava a manteiga no pão. O riso de Dulce enchia uma sala em segundos, e era o ponto de mudança de um humor péssimo para um pouco mais de otimismo por parte de Amaro.

Não que a vida tenha sido só flores. Eram um casal à moda antiga, mas tiveram brigas, dormidas no sofá, copos quebrados e gritos na madrugada, como qualquer casal. Só que acreditavam naquele olhar — aquele primeiro que os uniu e os unia sempre com laços inexplicáveis e invisíveis, resilientes às dificuldades do cotidiano. O que os fazia andar como dois apaixonados pelas ruas do centro da cidade mesmo com cabelos brancos, mesmo depois de tantos anos, como se a adolescência estivesse na alma, rindo-se e cochichando-se de si para si.

Agora que todos os parentes rezavam um Pai-Nosso e uma Ave-Maria e que a médium do centro espírita frequentado pelos seus filhos discorria sobre a longevidade do espírito para além da matéria, Amaro concebeu que aquela fagulha de vida que animou aquele corpo agora inerte — como se dormisse tranquilo —, aquela porção que o fazia pleno não se acabaria no esquife. Chegou a pensar em coisas como transcendência. E de porventura até existisse um Deus — se o quisessem chamar assim — por detrás de cada minúsculo momento que viveu ao lado daquela mulher e da família que criaram juntos. Há fios maiores que tecem a tessitura do Amor.

Não foi sem surpresa que filhos, netos, irmãos e amigos viram Amaro aproximar sua cadeira de rodas do caixão de Dulce e sussurrar, numa voz quase sumida, porém sem lágrimas:

— Adeus, Dulce. Até a Eternidade!

4 comentários:

Isaac Ribeiro disse...

Sensibilidade a flor da pele. Me senti velando Dulce, uma velha conhecida, depois de ler o seu poema. arrepiei... bjs

Madeleine Alves disse...

À flor da pele a gente fica quando um amigo tão sábio se sente assim com algo que a gente criou.

São irmãos como você, Isaac, que fazem tudo valer a pena! Bjs

Marcelo Rayel disse...

Então...

Acho bom você começar a encarar Os Dublinenses. Esse é o caminho...

Costumo dizer que o tal de amor (vai de letra minúscula mesmo, não anda merecendo enormes reverências ultimamente) é um feliz acidente. Não sei de acidentes podem ser chamados de felizes, mas fica sendo.

Um feliz acidente, como todo acidente, aquele que a gente não controla, a coisa boa vem e tomar tudo. Aqui é o exemplo de uma história que bem retrata isso, o feliz acidente, onde não há a manipulação do que se é, do que se sente, tudo apenas (e somente!)a fluência necessária.

E no aguardo do próximo conto-texto.

Madeleine Alves disse...

Valeu a dica, Marcelo! Procurarei Os Dublinenses, e depois trocamos figurinhas.

Realmente, a modernidade e o excessos de teorias nos fizeram perder a fluência. Porque a fluência vem do que é simples, e os mais antigos, por serem menos "entupidos", lidavam melhor com essa situação. Ao que parece, claro, e sempre em graus estritamente comparativos com nossos loucos tempos.

Beijos, mano! =)